domingo, 15 de setembro de 2013

Barroco Tropical


Terminei há poucos dias de ler Barroco Tropical, de José Eduardo Agualusa. Não leio, por norma, literatura africana. Não por achá-la desinteressante mas, essencialmente, por não ter tempo para ler nem um décimo do que gostava,  focando-me por isso num número mais restrito de temas, inspirações e autores.

No entanto, com Agualusa a história é outra. Ao fim da primeira dúzia de páginas vejo-me imerso em Angola, na Luanda de 2020. A cidade, cheia de contrastes, fascina e horroriza com a mesma intensidade. Em Barroco Tropical vamos sendo jogados entre dois amantes, um escritor e uma cantora, que se movem entre as elites. Convivem com jornalistas, empresários, generais, políticos, empresários-generais-políticos e até com a Senhora Presidente.

Nesta Luanda os ricos vivem em arranha-céus. Os pobres também. Numa Angola pós-bolha das matérias-primas, a construção em altura não encontrou inquilinos endinheirados suficientes. Assim, os andares mais altos são ocupados pelas elites e à medida que nos aproximamos dos pisos térreos, também a sorte dos moradores é mais rasteira. Terminamos nos pisos subterrâneos, ocupados por sociedades regidas pelas suas próprias regras e pelos seus próprios reis. A analogia entre o céu lá em cima e o inferno cá em baixo parece evidente. Mas só à primeira vista.

A vida de sonho dos ocupantes das penthouses depende da sua capacidade de alinharem, ou pelo menos não se incomodarem, com o esqueleto corrupto que dá forma à sociedade e à economia do país. O Medo começa quando se abrem os olhos e sobretudo quando se abre a boca para questionar. O Medo entra em cena e outra Angola aparece nas páginas. Mulheres caem do céu em plena tempestade (na verdade o livro abre com esta cena, não se compadecendo com este meu exercício de organização cronológica). Mulheres que sabem de mais e políticos que falam em excesso passam os seus dias num manicómio que é um labirinto a céu aberto, amarrados a peças de automóveis.

A violência e a repressão são praticadaa a coberto da luta das tradições africanas e das línguas nativas contra o português e a supostamente invasora cultura ocidental. Penas negras, talvez vindas das asas de um anjo da mesma cor, arrancam as verdades de quem as engole. Alguns anjos pretos dançam no cimo dos arranha-céus e outros, incapazes de tolerarem a sua própria existência, voam a toda a velocidade rumo ao solo.

No final das mais de 300 páginas já não olho para os inacabados prédios como uma viagem desde o inferno ao céu. Mais depressa encontro um paralelo com os círculos infernais de Dante. Os supostos vencedores das guerras de Angola vêem o seu país sequestrado por uma mão cheia de poderes. Aqueles que seriam sempre vistos comos os vilões também nos merecem algum respeito, pela forma irredutível como resistem à traição de um ideal em que aprenderam a acreditar e pelo qual se bateram toda uma vida.

Agualusa juntou, para colorir este retrato da distopia angolana, um colorido leque de personagens. Os já referidos amantes, os seus respectivos cônjuges, a modelo que achava ser a Virgem Maria, o sapador que perdeu a cara e se transformou em Rato Mickey, a mãe-de-santo que procurava um jovem preto e acabou com um português velho e o miúdo autista que pinta nas paredes o futuro que será e o futuro que poderia ter sido. Parecem vindos do universo do fantástico mas são incrivelmente plausíveis (o livro induz o gosto por oxímeros).

Quando acabamos de ler alguns livros, sentimo-nos como triufantes alpinistas que atingiram o cume. Quando acabo os livros de Agualusa esfrego os olhos e fico parado a tentar recordar-me dos pormenores do sonho que acabou há poucos instantes e de imediato se escapa entre os dedos. Escrever este texto foi um exercício para tentar contrariar essa perda inevitável.

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