Esta semana o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou, por escassa margem, a lei de saúde do presidente Obama, também conhecida como Obamacare. Trata-se de uma peça legislativa complexa e que toca num vasto conjunto de aspectos do sistema de saúde americano. Com a entrada em vigor desta lei, dezenas de milhões de cidadãos passarão a ter, pela primeira vez, acesso a cuidados de saúde. No entanto, o pomo da discórdia, que poderia ter feito a lei receber o chumbo do mais alto tribunal, era a obrigação de todos os indivíduos comprarem um seguro de saúde, sob pena de serem multados.
A direita americana fez desta lei o seu principal alvo, considerando-a um abuso do poder federal sobre os estados e sobre os indivíduos. A contestação foi um dos principais factores a alimentar a estrondosa vitória dos Republicanos nas eleições para a Câmara dos Representantes em 2010. No final das contas, foi um juiz conservador, o juiz-presidente John Roberts, quem liderou a maioria 5-4 que considerou a lei constitucional, contra todas as expectativas.
A obrigação de contratação de um seguro de saúde é essencial para a viabilidade da lei. A única forma viável de pessoas que à partida não são saudáveis serem cobertas por um seguro de saúde é os milhões de pessoas saudáveis que não tinham seguro passarem a tê-lo, baixando os custos médios por segurado. Os cidadãos mais saudáveis estarão, pois, a subsidiar os restantes. No caso dos pobres haverá comparticipação total ou parcial dos seguros, a somar aos programas já existentes de apoio aos mais carenciados. Paralelamente, serão criadas bolsas de seguro, cujo objectivo é criar um mercado mais líquido baixando os custos.
É, pois, uma abordagem bastante diferente da que temos, por exemplo, em Portugal. Em vez de optarem pela criação de um serviço público de saúde, decidiram-se por uma solução de mercado em que o Estado não é responsável primário pela prestação de cuidados de saúde. A lei tem alguns incentivos à redução de custos mas todas as análises indicam que o problema do custo exagerado da saúde nos Estados Unidos ainda não encontrou solução. Pesado e dispendioso como o nosso SNS é, a verdade é que a solução de mercado, no modelo americano, está longe de ser uma resposta eficiente. Os EUA são o país que mais gasta em saúde, em percentagem do produto.
Enquanto liberal não estou à partida confortável com a obrigatoriedade de aquisição de um bem ou produto. É verdade que somos obrigados a adquirir um seguro caso tenhamos um carro, mas aí trata-se de uma consequência da decisão livre de possuir um automóvel. Aqui não há essa pré-condição. No entanto, dada a obrigação do Estado em acudir aos doentes em caso de emergência, é defensável que as autoridades procurem minimizar esse custo, alargando os cuidados preventivos. Alternativamente, não contesto o direito do Estado em taxar os cidadãos (embora me revolte o peso da carga fiscal, principalmente face ao retorno gerado em serviços). Assim, podemos considerar este seguro obrigatório como um imposto, alternativamente aos impostos convencionais que poderiam financiar um serviço público de saúde. A decisão de John Roberts apoiou-se precisamente neste argumento, no poder das autoridades federais para taxarem os cidadãos.
Provavelmente esta lei ainda terá de ser revista em vários aspectos e o sistema de saúde americano continua longe de ser sustentável. Não obstante ser uma solução cheia de defeitos, o meu balanço é francamente positivo. A exclusão de dezenas de milhões do sistema de saúde era uma vergonha para um país com a prosperidade dos EUA. A oposição republicana nunca apresentou uma alternativa credível, o que dada a gravidade do problema é uma vergonha indefensável.
Politicamente, Barack Obama teve uma grande vitória. A reforma da saúde foi o seu maior combate político no primeiro mandato, tendo gasto todo o seu capital político num processo pouco dignificante no Congresso. Poderá agora apresentar-se às eleições de 6 de Novembro com uma reforma histórica e que vários presidentes (e primeiras-damas no caso do casal Clinton) tentaram alcançar sem sucesso. Será este um dos grandes temas em cima da mesa. A maioria da população é contra a lei, mas uma boa parte dos que são contra acham-na demasiado tímida. Por isso está longe de ser líquido que seja um peso às costas do actual presidente. Mas poderá ser um balão de oxigénio para o Tea Party, que foi decisivo na humilhação dos democratas em 2010. Seguramente, a reforma da saúde é mais um eixo da forte bipolarização da arena política norte-americana.
Acredito, porém, que o factor decisivo na escolha dos americanos será a economia. E aí Obama terá de os convencer que não negligenciou a economia em prol da saúde e de outras prioridades. Acima de tudo, Obama dependerá da capacidade dos europeus para evitar um colapso da sua economia, que inevitavelmente afundaria a tímida recuperação que se vive do outro lado do Atlântico.