Passadas 24 horas sobre as emoções da noite eleitoral, sinto-me capaz de fazer um balanço da saída de cena do primeiro-ministro e equipa que nos desgovernaram durante mais de 6 anos. Apesar de estar consciente dos tempos muito difíceis que aí vêm, há um sentimento que se destaca sobre os demais: o alívio. O alívio de saber que, apesar de os desafios que enfrentamos não terem diminuído, nos livrámos da maior fonte de dor auto-infligida.
Sim, nestes 6 anos nem tudo foi mau. Tivemos, principalmente nos dois primeiros anos, reformas importantes na Segurança Social e na Saúde. Foi traçada uma estratégia para a energia que, em larga medida, é positiva. A sua implementação, tristemente, nem tanto. A política externa foi indiscutivelmente um sucesso marcado pelo Tratado de Lisboa e pela obtenção de um assento no Conselho de Segurança da ONU. Na área social destaco a despenalização da interrupção voluntária da gravidez e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
No entanto, o preço que pagámos e pagaremos por estes sucessos é gigantesco. A ténue consolidação orçamental foi estilhaçada em 2009, entre a força da crise e a pressão do eleitoralismo barato, que se traduziu em aumentos salariais de 2,9% à função pública e numa redução do IVA em 1 ponto percentual. Instrumentalizados em 2009, os trabalhadores do Estado viram os seus salários cortados unilateralmente no ano seguinte. Os buracos nas diferentes empresas públicas foram-se somando, as clientelas das diferentes prestações sociais também. A crise veio proclamar aos sete ventos o que qualquer economista ou analista sério sabiam: o rei ia nu, o país caminhava para o precipício da dívida e da estagnação económica. Em seis anos, Sócrates acumulou tanta dívida como todos os seus antecessores desde o 25 de Abril de 1974.
Vítima de factores externos e das reformas que não soube e não quis fazer, o primeiro-ministro refugiou-se num discurso de vítima, aperfeiçoado ao longo de anos a combater escândalos de que foi protagonista, juntamente com os seus amigos e nomeados políticos.
O último acto deste drama (ou farsa) foi a viagem final para o mundo de Sócrates no País das Maravilhas. Confrontado com a crescente desconfiança de quem nos empresta dinheiro, Sócrates continuou a fugir às reformas que doem, até porque entretanto perdeu a histórica maioria absoluta que teve. Torcendo o braço e pisando os pés ao PSD, seu triste companheiro de tango, foi aplicando medidas paliativas aos bochechos em vez de atacar o monstro de forma certeira e determinada. Nisto distinguiu-se do seu grande amigo Zapatero, logo quando ele acertou o passo. Por fim, consciente de que pedir ajuda e assumir o falhanço era inevitável, tentou o último truque e recurso de uma criança ou de um fraco: culpar os outros. Forçou uma crise política e avançou para a sua derradeira campanha com o discurso da vítima e de último paladino do Estado Social, que ao longo de seis anos encaminhou para a aniquilação por obesidade.
Ao longo da campanha diabolizou um adversário que concorria com uma proposta simples, mas inovadora no panorama nacional: para salvarmos o mais importante da rede de segurança social temos de deixar de prometer tudo a todos. Agarrado a uma ideia oca de defesa de uma realidade que já não existia, Sócrates tentou repetir o malabarismo de 2009, mas desta vez acabou esmagado nas urnas. Cheguei a temer que tal não sucedesse. Para trás deixou um país em recessão e afogado num mar de dívida, uma sociedade mais crispada e um debate político com o mais baixo nível de sempre em Portugal. Simbolicamente, na despedida a última facada foi desferida pelos jornalistas que lhe perguntaram, inusitadamente, se temia ter de responder na justiça pelos casos em que foi envolvido. Foi o oportunista cortar de cordão umbilical de uma classe com quem teve uma relação doentia. Também César acabou morto às mãos dos senadores romanos, transtornados pela forma como se deixaram tornar cúmplices na subversão do regime.
Sócrates teve na saída o discurso mais elevado que me recordo ter saído da sua boca. Mas nem isso apaga uma queda sem glória, com um resultado inferior ao que impôs a Santana Lopes, até então considerado o paradigma do primeiro-ministro desastre. Sócrates diz que a história será justa com ele e nisso estamos de acordo. Sócrates será elevado ao panteão do que de pior a nossa democracia conseguiu produzir, rodeado dos seus querubins transfigurados em boys e girls. Fascinantes, intensos, trágicos. Assim foram os seis últimos anos. Que alívio terem acabado.
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